O professor novato

Crônicas escolares #2

Leonardo Bruno Galdino
5 min readFeb 7, 2020

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Quando aluno, eu espiava o cafezinho regado a sorrisos na sala dos professores e pensava: puxa, eles estão acima de todo sofrimento comum aos mortais! Não levam carão da diretora, não se apaixonam por colegas de escola — e portanto não levam foras dos quais todo mundo fica sabendo depois — e não fazem fiado na cantina. Mas então conheci o Prof. Lins. Que figura, o Prof. Lins.

Conheci-o justamente na cantina, pedindo um risole com guaraná fiado após levar uma chamada da diretora por haver se insinuado para o lado da Prof. Andreia, que educadamente lhe deu um fora. As três maiores ilusões que eu tinha em relação a professores, portanto, caíram uma por uma bem diante dos meus olhos. Naquela manhã, tornei-me uma espécie de confessor do Prof. Lins. Eu não me julgava minimamente apto para o sacerdócio, mas, como já dizia o sábio, a vocação vem com a oportunidade.

— Pode sentar aqui, se quiser.

— Obrigado, professor… Lins, não é?

— O próprio. Muito prazer. Seu nome?

— Bernardo. O prazer é todo meu.

— Não vai me perguntar por que estou com essa cara de cachorro que caiu do caminhão da mudança?

—Acho que eu nunca vi a cara de um cachorro nessas condições, professor. E depois mal conheço o senhor, que é novato por aqui. Então…

— Sim. Dois meses já, e ainda “novato”. Valha-me Deus…

Tomou a metade do guaraná num gole e pediu um café. Estranho beber café após meio litro de refrigerante estupidamente gelado, mas…

— Vai um espresso?

— Não. Vou no pinga-pinga mesmo. A passagem é mais barata.

— Engraçadinho. Se bem que uma piada a essa altura é bem-vinda.

— Vai me dizer a razão da cara de cachorro?

— Tomei um fora da professora Andreia. Conhece ela?

— Sim, claro. Foi minha professora na oitava série.

— Como se não bastasse, a diretora ficou sabendo e me chamou na sala dela. Me arrebentou no carão. Por isso estou aqui, agora, afogando as mágoas na cantina — e fiado, ainda por cima.

— Sério? Eu sempre achei que professor fosse imune a isso.

— “Isso” o quê?

— Foras, carões, fiados… Essas coisas.

— Qual a sua idade, Bernardo?

— Dezesseis.

— Série?

— Segundo ano.

—Então já devia saber que professor sofre igual todo mundo; talvez até mais. Na sua idade eu já sabia disso. Filho de peixe…

— Bem, meus pais não são professores, e toda vez que eu passo pela sala de vocês tudo o que vejo é interação calorosa — com exceção do Prof. Elpídio, que não larga aquele jornal.

— Não condeno o Prof. Elpídio, viu? Olha, deixa eu te dizer uma coisa: os professores são uma categoria bastante desgostosa. Toda aquela “interação calorosa” que você diz ver na maioria das vezes é pose. Além do mais, quase toda conversa gira em torno de novela, BBB e a última dieta da moda. Repito: não condeno o Prof. Elpídio.

— É. Parece que os alunos têm impressões fantasiosas das coisas.

—É. Costumam ter.

O Prof. Lins já ia pedir mais um café, quando o imponderável surgiu: a Prof. Andreia.

— Com licença, senhores. Lins, tem um minuto?

— Claro, claro, Andreia. Bernardo, se incomoda se eu…

— Imagina, professor! À vontade.

Tomei meu gole de simancol e saí. É óbvio que a conversa não deveria se dar na minha frente. No entanto, soube de seu conteúdo depois, quando encontrei meu confidente na hora da saída.

— Você não vai acreditar, Bernardo.

— No quê?

— Na minha conversa com a Prof. Andreia.

— Boa?

— Para lá de boa, eu diria. Ela veio se desculpar por haver me dado um fora. Reconheceu que exagerou. E é verdade. Eu não disse nada senão que ela estava bonita hoje. Acaso menti?

— Não. Realmente ela está bonita hoje. Aliás, ela sempre está. Mas hoje está mais.

— Foi exatamente isso que a levou a me dar um fora. Ela interpretou como se eu quisesse dizer que nos outros dias ela não estava. Mulheres!

— Parece até a minha mãe!

— “Você está sempre bonita, Andreia. E se eu disse que você está bonita hoje, significa que estará mais bonita amanhã, e mais ainda depois de amanhã, e assim por diante até o fim dos tempos”, expliquei-lhe. Mas claro, só disse isso porque senti que os ventos estavam a meu favor.

— Bela jogada! Mas então, ela esclareceu o fato para a diretora?

— Não. E por que o faria? Tapa dado não se tira mais. Se bem que, no fundo, acho que a diretora agiu certo. Não é só entre os alunos que é preciso manter a ordem (embora tudo não tenha passado de alarme falso).

— Bem, espero que todas as más impressões que a Prof. Andreia tinha do senhor se desfaçam de uma vez por todas agora.

— Que assim seja.

Os dias foram passando e a Prof. Andreia ficando cada vez mais bonita, e o Prof. Lins, cada vez mais sorridente. Somente um tolo veria nisso apenas uma coincidência.

Nossos pombinhos casaram-se no final do ano seguinte (a diretora, vejam só, foi uma das testemunhas). Não oficiei o casamento, mas tive a grata satisfação de ser um dos convidados. Eu também tinha motivos para festejar. Afinal, a festa do casal coincidia com a minha conclusão do Ensino Médio.

Anos mais tarde encontrei o Prof. Lins nos corredores da universidade. Ele agora era professor de lá, e eu, aluno recém-admitido à pós-graduação.

— Bernardo! Que bom revê-lo!

— Prof. Lins! Finalmente serei seu aluno, então?

— Parece que sim, não é? Vamos ali tomar um café. Vai um espresso?

— Continuo no pinga-pinga, mestre. Passagem mais barata.

— Não acredito que caí de novo nessa piada!

— Nunca é tarde para cair numa piada, professor — respondi rindo. — Mas então, como vão as coisas?

— Bem, obrigado. Andreia esteve adoentada por esses dias, mas está bem agora. Os meninos, idem. Apenas o Mateus que está me preocupando um pouco.

— O que ele tem?

— Está sofrendo de coisas do coração.

— Mas já? — respondi estupefato, já ajeitando a batina para mais uma confissão. — Que idade ele tem?

— Oito.

— E que espécie de “coisas do coração” pode atingir um menino de oito anos?

— Qual a sua idade agora, Bernardo?

— Vinte e cinco.

— Então já deveria saber que um homem começa a sofrer por amor já pelos oito anos.

Deu um gole no espresso e disse:

— Olhe, está vendo aquela sala de professores ali? Pois continua a mesma da escola em que nos conhecemos. Os assuntos são os mesmos, os tipos humanos são os mesmos, a pose é a mesma. Não há uma única alma ali que não fale javanês. Mas estou tegiversando. Vamos ao Mateus.

Ajeitou-se na cadeira do confessionário e engoliu o último terço do café. Tremi nos sapatos. Que tipo de confissão ele teria para me fazer sobre o filho de oito anos, meu Deus?

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